A fada do dente

Pesquisa da USP amplia conhecimento sobre o autismo e auxilia teste com novas drogas

Pesquisa do Laboratório de Células-Tronco da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia (FMVZ/USP) abre novas luzes na compreensão dos fenômenos biológicos que envolvem o Transtorno do Espectro Autista (TEA). Iniciado em 2008, o projeto A Fada do Dente coleta, estuda e armazena dentes de leite de pacientes autistas. É realizado em conjunto com a Universidade da Califórnia (UCSD), de San Diego (Estados Unidos).

O objetivo é aprofundar conhecimentos biológicos e genéticos sobre os transtornos do espectro autista reconhecidos pela Organização Mundial da Saúde (OMS). De modo geral, a doença é caracterizada pelas dificuldades de comunicação, de interação social e de alterações comportamentais, como, por exemplo, a estereotipia (repetição de gestos e movimentos). Nos Estados Unidos, a incidência é de um caso a cada 88 nascimentos, e acomete cinco vezes mais meninos do que meninas. No Brasil, não há estatísticas oficiais, mas estima-se que os números sejam próximos dos norte-americanos.

Um dos grandes desafios do autismo é a dificuldade no diagnóstico, que é apenas clínico. Não há um marcador biológico (genético) exclusivo para a doença. Atualmente, é impossível prevenir sua incidência. Além disso, a confirmação de um caso depende de avaliação conjunta de equipe multiprofissional especializada no tratamento, incluindo fonoaudiólogo, médico, psiquiatra, neuropsicólogo, etc.

Máquina do tempo

O trabalho na FMVZ-USP é inédito no País. Abre possibilidades para testar novas drogas para combater a doença, descrita pela primeira vez em 1943, pelo psiquiatra Leo Kanner. Para haver avanços no tratamento e prevenção, a ciência precisa descobrir exatamente quais genes estão diretamente envolvidos com a doença – o espectro da incidência genética é muito variado – e em quais situações são ativados.

A dupla de biólogos Patrícia Beltrão Braga e Alysson Muotri partiu da similaridade entre os quadros clínicos de pacientes e lançou mão da técnica de reprogramação celular. O método consiste em extrair e analisar a polpa do dente de autistas, material orgânico que contém células-tronco. Depois, no laboratório, promover uma “volta ao passado” do tecido celular por um processo de diferenciação da célula até uma célula embrionária.

A partir daí, essas células são novamente diferenciadas e produzem células encontradas nos tecidos cerebrais, os neurônios. É nessas células que a ciência centraliza esforços para saber mais sobre o autismo.

Líder do projeto no Brasil, a pesquisadora Patrícia Beltrão Braga recebeu financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado (Fapesp) para realizar o primeiro projeto de reprogramação celular. Nele, usou apenas dentes de crianças sem autismo para aprimorar a técnica. Pretende, agora, solicitar novo financiamento, para bancar pesquisa somente com dentes de leite de autistas.

Novas possibilidades

Não invasiva, a técnica da FMVZ-USP amplia o universo tradicional da pesquisa. Complementa, por exemplo, mutirões de coleta de sangue de pacientes e de seus pais feitos nos Estados Unidos para descobrir mais sobre a doença. Favorece também a comparação, em laboratório, de tecidos cerebrais de cadáveres com os neurônios de autistas, considerando que estes seguem vivos e têm histórico de vida conhecido. Melhoram, assim, a abordagem do trabalho.

De natureza multidisciplinar e internacional, a pesquisa teve também a colaboração do psiquiatra Marcos Mercadante, falecido em 2011. Envolve mais os biólogos Graciela Pignatari e Fabiele Russo, a farmacêutica Isabella Fernandes e também médicos psiquiatras, psicólogos, dentistas, neuropsicólogos, entre outros especialistas.

Etapa intermediária

Nas crianças, a substituição da dentição de leite para a definitiva ocorre em média entre os seis e os dez anos de idade. O projeto da USP consiste em comparar a polpa de dentes de autistas com a de não portadoras da doença. Para explicar o processo, a cientista Graciela Pignatari traça um paralelo com o desenvolvimento de uma árvore.

“Imagine a célula embrionária como se fosse uma semente. A muda seria a etapa intermediária no seu desenvolvimento, e a árvore, o organismo adulto. Assim, dentro do dente de leite do autista há células-tronco, que ainda não sofreram transformação definitiva. Por estar no meio do “caminho”, é possível estudar diversos aspectos”, explica Graciela.

Inspiração oriental

A ideia foi concebida a partir de pesquisa de 2006 do cientista Shinya Yamanaka. Ele propôs experiência semelhante com a pele humana, tecido terminalmente diferenciado, que já concluiu o último estágio da transformação. “Na USP, pegamos um atalho. Fazemos a reprogramação celular no meio do processo. E avançamos mais rápido nos resultados”, observa Patrícia.

Outra novidade: a pesquisa original exige ida do paciente ao laboratório para que seja colhida amostra de sua pele por meio de procedimento doloroso. Já na técnica da USP, a coleta é indolor, dispensa viagens e reaproveita dentes que cairão espontaneamente.

Instruções para remessa

Pais de autistas interessados em colaborar podem encaminhar o dente pelo correio, em caixa de isopor especial cedida pela USP. Pode ser de qualquer tipo: molar, canino, pré-molar, etc. O acervo atual conta com 50 amostras. O passo inicial é enviar e-mail para projetoafadadodente@yahoo.com.br. Na mensagem, precisa solicitar o kit de acondicionamento desenvolvido na USP. Receberá, então, gratuitamente, em sua residência, o material de coleta, contendo o termo de doação, o telefone de contato do pesquisador responsável e as instruções para remessa.

O envio, com o documento assinado, deve ser feito em no máximo 48 horas após a queda. A única despesa para a família do doador será pagar a postagem do Sedex no correio. O ideal é pedir o kit quando o dente começar a amolecer, para haver tempo hábil de remessa e devolução do material coletado.

Depois de receber o kit, basta colocar o frasco com o líquido rosa na geladeira e o gelo reciclável no congelador. Quando o dente cair, a recomendação é colocá-lo rapidamente no frasco, guardá-lo na geladeira e ligar para o pesquisador para orientar a coleta. Estes cuidados aumentam as chances de manter as células-tronco vivas – e permitirão, assim, a extração das mesmas no laboratório.

Rogério Mascia Silveira
Da Agência Imprensa Oficial

Reportagem publicada originalmente na página II do Poder Executivo I e II do Diário Oficial do Estado de SP do dia 15/08/2012. (PDF)